quinta-feira, 12 de setembro de 2013

OS “SANTOS DO FORNO” OU “LI. GAIAS” (Pedra do lado esquerdo)



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ÍNDICE

Preâmbulo

A Pedra que serve de base à cruz que, hoje, fica à esquerda da cruz central do Calvário de Lameiras tem imagens somente na face frontal.
Esta pedra é diferente das outras, não só pela sua forma e tamanho, mas, sobretudo, pela inscrição que nela se encontra, pelo nome por que é conhecida e pelas vicissitudes por quem tem passado.

 “Santos do Forno”
Relativamente às suas medidas, a largura da face da frente juntamente com a face oposta, é de 0.55m, enquanto as faces laterais não ultrapassam 0,47m, sendo a altura das quatro faces igual, sensivelmente 0, 60m. O seu peso deve rondar os 400kg, enquanto a sua forma é a de um paralelepípedo:
Paralelepípedo
Para além das figuras, esta pedra caracteriza-se por uma inscrição grega exarada em letras romanas “Li. Gaias” e pela maneira como era conhecida entre os Lameirenses, pois chamavam-na “Santos do Forno”, sem falarmos da história “meio lendária” da sua transladação de do seu lugar “original” para o forno comunitário, daqui para Pinhel, sede do Concelho e daqui para o local onde agora se encontra. 
Ora, se bem se compreende o atributo “do forno”, mais dificilmente se percebe porque é que a população lhe atribuiu sempre o nome de “Santos”[1]. Esse dois atributos, especialmente o segundo, levaram-me a opinar que, por detrás deles esteja a prestação de um culto divino que antes existira legalmente e que, em tempos posteriores, passou a ser considerado abominável, permanecendo furtiva e disfarçadamente na mente e no coração de alguns dos seus devotos que o foram perpetuando até se desvanecer e misturar com elementos lendários.

1- Identificação e Descrição das figuras

A partir da fotografia ilustrativa que acabo de apresentar verifica-se existirem cinco elementos ilustrativos:
 Elemento –  A Inscrição LI.GAIAS (Fig. 1), por cima de todo o conjunto artístico;

Inscrição
2º Elemento – Uma figura humana (fig.2), ao centro, vestida com uma túnica que lhe desce do pescoço até ao chão, encobrindo-lhe inclusivamente os pés;
    • Tendo, à cabeça, um cesto ou alcova recheada de frutos ou outros géneros alimentícios; 
Figura humana

3º Elemento – Uma figura humana (feminina?) (Fig.3), do seu lado direito, a oferecer-lhe, com a mão direita, um manhuço[2] de espigas ou um ramalhete de flores e com a mão esquerda empunhando um ramo de árvore (mais semelhante a um ramo de palmeira/tamareira);

4º Elemento – Do lado esquerdo e, imediatamente junto à figura humana central, descortina-se uma outra figura (Fig.4), de perfil e completamente vestida, à excepção dos pés, com corpo humano e com cabeça de ave (possivelmente a cabeça da Fénix[3], cf. Moisés do Espírito Santo, Secção de figuras entre as pp. 240-241, verso da moeda de Tiro, da figura 37) em posição de confidente ou de assistente privilegiado, possivelmente com a função sacerdotal;

5º Elemento – Mais afastada, está outra figura humana (Fig.5), talvez masculina, também de costas, com o cabelo mais curto do que o da primeira figura, e nua, a oferecer, com a mão esquerda, um grande fruto (muito parecido a um abacaxi/ananás), enquanto na mão direita levanta um ramo de árvore, em sinal de alegria.
         
A simetria conseguida entre esta figura e a aqueloutra do lado direito pode constituir, por assim dizer, a dupla de “acólitos da espiga”.

2- Análise das imagens


2.1- Análise da Inscrição


As letras estão escritas em caracteres latinos (LI.GAIAS), mas formam um grupo ou expressão grega Λι. Γαιας ou Λι. γαιας.

Nesta inscrição, o nome Gaias vem precedido pelo advérbio Li e é seguido por um ponto. Este advérbio Li encontra-se em Aristófanes (184,2), um poeta e cómico ateniense do século IV (a. C.), na forma de Lian Pánu, segundo a opinião de Liddel & Scott[4], com a significação de ‘verdadeiramente’, ‘o verdadeiro’, ‘o autêntico’. Desta forma, a tradução de Lian Pánu de Aristófanes seria “ao verdadeiro deus Pan”. De igual modo, a forma Li (Λι), seguida do caso genitivo, encontra-se na Tragica Adespota (Ed. A. Nauck TGF p. 837), segundo os mesmos autores Liddell & Scott[5].
Ora, aplicando o mesmo advérbio Li (Λι) ao substantivo “Gaias, Γαιας”, teremos a expressão Li.gaias, significando: “à verdadeira Gaia », ou « à autêntica Gaia».
Os deuses romanos não foram muito populares entre os lusitanos. Se é verdade que o culto aos vários deuses romanos se encontra comprovado por todo o lado, também não deixa de ser verídico que esse culto se encontrava sobretudo nos centros urbanos ou seja, nos municípios. Ao lado destes “instalaram-se os representantes de todo o panteão asiático, e era para esses deuses que ia a adoração mais fervente das multidões[6]. García y Bellido[7] explica a “não adesão à religião romana pela falta de conteúdo místico da mesma”
Por outro lado, os romanos adoptaram divindades vindas de outros povos e, tanto aos deuses próprios, como aos que tinham adoptado de outras origens, prestavam-lhes o culto que lhes era apropriado, de uma maneira geral em pequenas aras para os quais escolhiam de preferência pequenas elevações, perto ou dentro das suas residências quando se tratava de deuses pertencentes a uma família ou, então, nos pequenos morros quando se tratava de uma povoação ou vila.
Essas aras eram preferencialmente em forma de paralelepípedo, sendo normalmente trabalhada artisticamente, podendo, inclusive, conter uma ou mais inscrições. Era à volta dessa ara que se realizavam as cerimónias cultuais dedicadas às divindades protectoras da casa ou do povoado.
A Ara era propriamente o local onde se depositavam as oferendas e encontrava-se colocada na parte mais elevada da casa ou da povoação que, normalmente, se situava num pequeno outeiro sobranceiro a esses lugares. A esses lugares sobranceiros à aldeia ou aos outeiros onde as aras eram colocadas dava-se-lhes o nome de “altarium (singular). Portanto, o lugar de culto de uma vila (casa senhorial) romana ou de um povoado era constituído por dois elementos fundamentais: o outeiro ou parte mais elevada que era, normalmente preparada de modo a constituir uma espécie de terreiro (quando não era já naturalmente um lajedo) e a ara que se colocava no meio desse local aberto. Esta disposição da Ara facilitava a adoração que os fiéis vinham prestar à divindade em cuja honra era erigida.
Manuel J. Gandra no seu livro Portugal Sobrenatural[8], ao referir-se a este assunto fornece informações muito importantes, tanto no que diz respeito à ara, como no que concerne o nome porque ficou sendo conhecido o altarium entre a gente do Minho. Segundo ele, a ara constituía o “elemento fulcral do altarium, isto é, do outeiro, colina ou alto sobranceiro à povoação, onde decorriam os referidos cultos”, enquanto o altarium se conserva na toponímia minhota sob as formas de crasto, crastelo e castelo”. Por outro lado, Gandra afirma que, “nos nossos dias, muitas aras aparecem a servir de supedâneos a cruzeiros processionais de certos templos erguidos na proximidade de antigos outeiros, substituindo-os”.

2.2- Características sagradas desta pedra

Esta sua explicação julgo poder aplicar-se à pedra de Lameiras que é conhecida sob o nome de “Santos do Forno” e dou razão desta minha hipótese:
 Em primeiro lugar esta pedra apresenta características de ara romana, pois que tem forma paralelipipédica; é uma pedra trabalhada artisticamente; apresenta imagens referentes à agricultura e possui uma inscrição que tudo indica ser dedicada à deusa Gaia, isto é, à deusa Mãe-Terra.
 Em segundo lugar, encontra-se actualmente a servir de supedâneo de uma cruz.
Em terceiro lugar existe uma tradição em Lameiras, segundo a qual essa pedra, nos seus inícios, se encontrava junto às outras duas pedras que hoje fazem parte do Calvário e que teriam sido separadas por um “homem mau”, talvez um Regedor ateu ou incrédulo. Essa personagem desconhecida teria procedido a essa separação, deixando uma no lugar original (a pedra central), levando a segunda para o forno (de modo a padecer os horrores do fogo) e a terceira, para a fonte do Lameiro (de modo a ser afogada).

2.3- Pedra ligada a uma Lenda

Entre o Povo de Lameiras existe uma “Lenda” ou história, segundo a qual esta pedra, na sua origem, repartia o mesmo espaço sagrado com as outras duas pedras que, hoje se servem de supedâneo às outras cruzes do Calvário do “Santo”. Uma vez separadas por um homem mau, foram ocupar lugares distintos: 
  1. A pedra central foi utilizada como pedestal da Cruz Central que assim ficou por muitos anos;
  2. A pedra da “Pietá” foi colocada nua “Fonte do Lameiro” para que se afogasse sempre que as águas crescessem;
  3. A “Santos do Forno” (a pedra que está a ser estudada neste terceiro capítulo) foi colocada numa das paredes do Forno Público ou Comunitário para que sofresse os horrores do fogo.

2.4- Toponímia sagrada de Lameiras

Em Lameiras existem nomes que podem ser relacionados com a Ara dedicada a Gaia. Por exemplo:
O topónimo de “Castelo” (um dos locais a Noroeste da aldeia e considerado o bairro onde começou a construção da aldeia) talvez tivesse a sua origem num antigo Castelum que teria substituído o nome de Altarium, onde se encontrava instalado o Altar dedicado a Gaia.
Na verdade, a tradição afirma que as três pedras originariamente se encontravam a ocupar um mesmo espaço, ou seja, uma zona, mais ou menos extensa, onde elas poderiam ter o respectivo assento.
Quem conhece bem a topografia de Lameiras sabe que o terreno que, começando no “Santo”, passa pelo “Castelo” e se prolonga até à “Tritana”, onde, no meu tempo, existia uma nascente de água a partir da qual foi feito um pequeno reservatório muito rudimentar que servia de lavadouro de roupa.

Croquis da Lomba Sagrada de Lameiras (Distâncias calculadas fora do local)[9]
                                        ‘Santo’       Fidalga”         ‘Castelo’                     Tritana’
 O “Castelo” foi sempre considerado o “começo da Aldeia”, pois “acima dele, havia muitas formigas”, dizia-me um habitante do bairro. Este facto impediu a construção de habitações humanas na área superior. Este nome, porém, como já vimos relacionar-se-ia com o “Castelum” romano que poderia muito bem ser o substituto do nome “altarium”, ou do local onde existira, antigamente a Ara sacrificial.
A “Tritana”, por seu lado, é um nome que, possivelmente, teve origem num possível culto dedicado à família do deus mitológico Tritão (Τρίτων). Esta divindade marinha era considerado o mensageiro do Mar por ser filho de Anfitrite (ou Salácia) e de Poseidon, o deus do Mar que na mitologia romana tinha o nome de Neptuno e que era geralmente representado com cabeça e tronco de homem e cauda de peixe.
Tritão deu origem à classe dos Tritões (Τρίτωνες), que podiam ser masculinos e/ou femininos e cuja função era a de acompanharem as divindades marinhas. Sendo assim, o nome “Tritana” estaria relacionado com uma das filhas de Tritão, talvez Triteia[10]. Assim, tal nome, dado à pequena nascente e pequeno tanque de Lameiras, constituiria um resquício deixado, ali, de uma divindade feminina da mitologia greco-romana.
Desta forma, toda essa lomba teria sido, nos inícios da Povoação de Lameiras, o espaço sagrado comum aos cultos que se prestavam às principais divindades greco-romanas. O “Santo” deveria constituir o lugar do deus principal cujo nome se desconhece, presentemente; o “Castelo” seria o lugar do altar de Gaia; a “Fidalga” (zona entre o “Santo” e o “Castelo”) poderia ter sito assim chamada por ali estar construída a residência de uma Dama nobre e a”Tritana” seria o local reservado a uma filha de Tritão ou, talvez à própria Anfitrite, a deusa do mar e esposa de Tritão, considerada também uma das filhas de Poséidon.
Ora, se dermos crédito a essa tradição, podemos admitir que essas três pedras originariamente se encontravam perto umas das outras. E, se a pedra central nunca foi removida do local onde ainda se encontra hoje, então tal facto pode ser indício de que o altarium ou outeiro original seria o outeiro que hoje é chamado de “Santo” e que se estende para Norte, indo terminar na fonte da Tritana.
O nome “Castelo”, dado a este bairro de Lameiras bem pode ter origem no facto de essa zona ter servido de altarium, à ara dedicada a Gaia. Falta saber o que significa, nessa antiga tradição, a expressão “estarem juntas” as três pedras. Tanto pode significar que estava juntas, como agora se encontram, o que não me parece muito plausível, como encontrarem-se as três num mesmo outeiro, embora separadas por uma certa distância o que me parece ser mais realista.
Assim sendo, e relativamente à pedra na qual está esculpida Gaia, poderia ter acontecido muito naturalmente, o seguinte: nessa zona sobranceira à povoação de Lameiras existiu, primeiramente, o altarium romano onde se encontrava a ara dedicada a Gaia, e que se localizaria entre a Fidalga e a Tritana; este local sagrado teria ficado conhecido entre a gente de Lameiras pelo nome Castelo, topónimo que ainda hoje persiste; mais tarde, com a chegada do Cristianismo e até ao século VII a prática religiosa em honra dessa divindade Gaia continuou paralela com a prática cristã que escolheu o outeiro do “Santo” para elevar a Cruz, o símbolo do Cristianismo; os próprios cristãos continuavam a prestar culto tanto à Cruz, símbolo do Cristianismo, como a Gaia, resquício do politeísmo romano; no sétimo século, principalmente após o VII Concílio de Toledo, no Reino Visigodo (cujos inícios tiveram lugar a 18 de Outubro de 618 e no qual tomaram parte 39 bispos sob a presidência do de Orôncio de Mérida), muitas coisas começaram a mudar no seio do cristianismo ibérico.
 Neste mesmo Concílio iniciou-se uma modificação do Direito Romano de Justiniano, iniciando-se uma série de quatro colecções visigóticas. Logo na primeira colecção foram declaradas “revogadas todas as leis anteriores, proibindo o uso em qualquer juízo das leis romanas e determinou que todos os pleitos que surgissem dali em diante, quer civis, quer crimes, fossem processados e julgados exclusivamente de acordo com as regras estabelecidas na sua colecção”[11].
E, no decorrer deste mesmo Concílio, introduziu-se no Credo a palavra “filioque[12], o que originou, mais tarde, o cisma entre a Igreja Romana e a Igreja Ortodoxa Grega que reclamava que a introdução de tal palavra era espúria e contradizia o Credo da Concílio de Niceia (325 d. C.), actualmente a cidade de Iznik, na província de Anatólia, na Turquia asiática e nome que se costuma dar à antiga Ásia Menor.
Efectivamente, segundo testemunho da Arquidiocese Ortodoxa Grega de Buenos Aires e América do Sul[13]
“A palavra "Filioqüe" significa "e do Filho" e representa uma afirmação teológica introduzida abusivamente pelo Ocidente no texto original do Credo de Niceia-Constantinopla. Essa interpretação abusiva começou por ser feita em Espanha, nos Concílios de Toledo dos séculos VI e VII e, mais tarde, generalizou-se a todo o Ocidente.
Vejamos o que diz o texto original do Credo: "Creio no Espírito Santo (...) que procede do Pai, e com o Pai e o Filho recebe a mesma adoração e a mesma glória". Portanto, temos uma afirmação muito clara de que:
«O Pai, criador de todas as coisas, gerou o Filho e expirou o Espírito Santo; Tanto o Pai, como o Filho, como o Espírito Santo, são adorados e glorificados do mesmo modo; isto é, nós, cristãos, adoramos e glorificamos uma Trindade perfeita, três Pessoas num só Deus.»
Ao alterar esse texto, aprovado por todos os Padres conciliares e inspirados pelo Espírito Santo, a Igreja Romana impôs aos seus fiéis a seguinte modificação:
«Creio no Espírito Santo (...) que procede do Pai e do Filho ('Filioqüe')" Isto significa que o Espírito Santo é visto como uma terceira Pessoa "diminuída" em relação ao Pai e ao Filho. Como se o Espírito Santo já não devesse ser adorado e glorificado do mesmo modo e com a mesma fé com que o são o Pai e o Filho...».
Esta questão, porém, prolongou-se durante muito tempo, provindo dum credo atribuído ao papa, São Dâmaso (366-384), sendo acompanhada de outras profissões de fé dos séculos IV-VI. Seguindo estes exemplos, alguns dos Concílios regionais, especialmente da Espanha começaram a fazer semelhantes declarações, sobretudo aqueles que se realizaram nos anos 447, 633 e 638. Esta prática dos concílios espanhóis tinham por objectivo difundir essa doutrina que, a bem dizer, contradizia o Credo do Concílio de Nicéia.
Mais tarde, a palavra “filioque” foi introduzida pelo III Concílio de Toledo, realizado em 589, sendo recitado o credo já com essa palavra introduzida. Simultaneamente a essa introdução foi pronunciado o anátema sobre todos aqueles que recusassem acreditar que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho.
Esta inclusão de “filioque” no Credo de Niceia, foi seguida pelos Concílios regionais de Toledo (VIII, em 633; XII, em 681; XIII, em 683; XIV, em 688; XVII, em 694) e ainda pelo IV Concílio regional de Braga, em 675 e pelo de Mérida, em 666[14].
A dar crédito a estas transformações no Cristianismo, dos primeiros sete séculos, pode inferir-se que até esse tempo o Cristianismo não poderia ter eliminado na Península Ibérica os cultos tidos como idolátricos e provenientes das civilizações anteriores. Era, demasiado evidente que, a par do culto, praticado pelos novos cristãos “a cristianização não terá eliminado as práticas litúrgicas tradicionais, nas zonas rurais, realizadas no altarium (outeiro), apenas lhes desviando o alvo”, no dizer de Manuel Gandra[15]. Este mesmo autor continua por afirmar no mesmo texto que “Só a partir do século IX, com o início da organização paroquial, os outeiros terão sido dotados de ermidas” ou capelinhas. Até lá as aras ou estátuas representativas das divindades adoradas existiam ao ar livre, desafiando as intempéries e as adversidades de toda a espécie.

2.5- Interpretação da Lenda

Aproveito esta anotação de Gandra para fazer uma pequena observação acerca do nome Castelo pelo qual é conhecida uma parte ou bairro de Lameiros e que fica contíguo ao local do Calvário actual, onde hoje se encontra a pedra, conhecida por “santos do forno”. Segundo a tradição (como já disse, mas torno a repetir), esta pedra teve o seu primeiro “habitáculo” exactamente onde agora se encontra. Ou seja: a dar crédito a essa tradição, esta pedra teria sido retirada do outeiro que sobranceava a aldeia, ou seja, de uma zona pertencente ao outeiro que ocupava a região que hoje se expande desde o “Santo” até à “Tritana”, passando pelo “Castelo”.
 Por outro lado, a mesma tradição refere que foi retirada dali por alguém que “era descrente”, e que, por isso, foi alcunhado de “homem mau” ou “não temente a Deus”. Ora, como para fazer isso só poderia tratara-se de alguém com autoridade, fácil foi concluir ter sido um certo “Regedor” da Freguesia, cargo ocupado por um cidadão que sendo considerado apto a manter a ordem pública, era nomeado directamente pelo Presidente da câmara. Este “Regedor” seria, por assim dizer, a unificação dos poderes civil e religioso que foi estabelecida a partir do Édito de Milão[16] do imperador Constantino, com um imperativo conjunto da unificação do Império e intensificada no tempo do reino visigótico num intuito idêntico que foi a unificação do Reino Visigótico sob o signo do Cristianismo. Poderia, também, este “homem mau” ser referido a uma autoridade religiosa cristã que teve por finalidade erradicar o culto à divindade Gaia (?).
Ora com o decorrer dos tempos e com a sucessão das gerações, foi fácil passar da história à lenda e transformar a realidade dos factos em histórias misturadas com semelhanças adicionadas e individualmente interpretadas consoante o que mais verosímil parecia no momento em que as pessoas se sentiam confrontadas.
Assim, ao falar-se de uma pessoa “descrente” poderia, na sua origem, significar descrente na adoração prestada a uma divindade que não fazia parte da ortodoxia do Cristianismo Romano e as expressões “um homem mau” e “não temente a deus” poderiam muito bem ter sido proferidas pelos adoradores dessas divindades antigas que, com a intransigência dos chefes do Cristianismo procuraram desmantelar os sacraria, levando para locais diferentes e de usos completamente a-religiosos, as aras que tinham sido dedicadas a tais divindades. Desta forma, a ara dedicada a Gaia teria sido levada para o forno comunitário, enquanto a ara que possui a dupla imagem do Ankah e da Grande-Mãe teria sido encrostada na parede da “Fonte do Lameiro”. Esta seria uma das vertentes da história da tradição cuja finalidade seria, portanto, prioritariamente fazer desaparecer os lugares altos onde eram adoradas divindades antes tidas por verdadeiras, mas apelidadas de idolátricas pelos seguidores da Religião subsequente, ou seja, a Cristã.
Tal mudança de locais, no entanto, pode muito bem ser considerada sob dois pontos de vista diferentes: primeiramente e seguindo a lógica anterior pode ser considerada como a condenação ao fogo e ao afogamento de todas as divindades contrárias ao Cristianismo; mas também pode ser considerada como uma elevação destes dois últimos lugares, enquanto o forno passaria a lugar de adoração de Gaia, deusa agrária das colheitas (e muito bem visto, porque é no forno que se coze o pão proveniente dessas colheitas) e a Fonte transformar-se-ia num templo dedicado à Grande-Mãe que, além de ser tida como a deusa da fertilidade, era igualmente simbolizada pela abundância das águas.
“Fonte do Lameiro”
Foto de JCM (2004)

Ângulo donde foi extraída a dita pedra, vendo-se as pedras de substituição
Foto de JCM (2004)
De facto, a pedra com a inscrição Li.Gaias tem todas as características de uma verdadeira ara dedicada à deusa Gaia, que não seria outra divindade senão aquela referente à deusa Mãe-terra.
Segundo Hesíodo[17], Gaia (que também pode ser denominada Géia, Gea ou Gê) é a deusa da Terra, a Mãe-Terra, que tendo surgido do caos, juntamente com Tártaro, Eros (o amor), Erebo e Nix (a noite), gerou sozinha Urano, Ponto e as Óreas (as montanhas).  E com Urano gerou os doze titãs chamados respectivamente: Oceano, Céos, Crio, Hiperião, Jápeto, Teias, Reia, Témis, Mnémosine, Febe, Tétis e Cronos[18].
Mas também não seria, de todo alheia nessa inscrição, a presença de Gaiu, pois esta palavra ‘Gaio’ (de Gáïos, a, on[19]), é um adjectivo, referido a Terra, significando: ‘da terra, ‘terráqueo” ou ‘filho da terra” (= paîs gaïos), sendo o seu genitivo Gaiou[20]. Este nome, além de se aparentar com Gaia (Terra, em oposição a Mar e Céu) seria o nome sob o qual era conhecido o próprio Poséidon, o deus do mar. Poséidon, na verdade, começou por ser um deus agrário, ao qual os gregos e fenícios prestavam culto. Por estas características ctónicas e pela força da metonímia, foi-lhe atribuído o nome de “GAIUS”, o “Senhor ou Deus da Terra”, por excelência.
Esta divindade passou por várias metamorfoses, através dos tempos. Segundo Moisés do Espírito Santo, Poséidon/Gaio “presidiu, por vezes aos percursos da vegetação e foi honrado com as primícias da agricultura porque muitos lhe atribuíam a propriedade de encher os caules de seiva e os bagos de sumo”[21] e veio a ser celebrado em certas regiões no mês de Agosto, antes mesmo das vindimas[22], enquanto que noutros lugares da costa marítima do Médio Oriente foi adorado como um deus dos infernos e do fogo explicando Moisés do Espírito Santo[23] esta última atribuição pelo facto de existir uma certa semelhança entre os abismos marinhos e o mundo subterrâneo e por se atribuir a Poséidon o poder de provocar os terramotos e os maremotos.
Poseidon[24]
 É muito curioso dar-se a Gaio a atribuição de Deus do Inferno, e de Deus do fogo. Esta atribuição poder-se-ia encontrar numa das doze janelas do Coro da Catedral de Canterbury (25), onde estava escrito o seguinte texto:
Sic deus aitatur tumulo triduoque moratur. 
Dominus ligaiu diabolum spolifiuit infernum[25].
 
E cuja tradução, em português poderá ser a seguinte: 
 
 Assim como se diz que Deus morou no túmulo durante três dias, 
 
Assim o Senhor Ligaiu sepultou (substituiu (?) o diabo no inferno 
Mais tarde, Poséidon/Gaio passou a ser o Senhor dos mares, porque os seus adoradores se tornaram marinheiros e, por extensão, deus dos oceanos, dos rios, dos lagos e das fontes. Assim, quando Ulisses enfrentou as graves dificuldades da navegação, é de Poséidon que ele fala e é a ele a quem se dirige, segundo a Odisseia de Homero.

3- Conclusão

A figura que se encontra nesta pedra do Calvário do Santo de Lameiras, concelho de Pinhel e que possui a inscrição LI.GAIAS, deve ser uma Ara ou Altar dedicado a uma divindade chamada Gaia, Géia, Gea (Γαῖα que é a forma poética grega de Γῆ ( ou - “terra”) que personificava a Deusa da Terra ou a Mãe-Terra à qual os antigos habitantes de Lameiras ofereciam parte das suas colheitas, na esperança de receberem as graças da fertilidade dos seus campos e dos seus animais.
 A existência desta pedra no “Santo” dessa freguesia é um monumento de carácter religioso que, além de testemunhar o culto prestado a uma divindade não cristã, supõe uma época muito antiga, anterior, pelo menos, à época em que o cristianismo se fixou plenamente nessa aldeia.



 NOTAS

[1] Esta história foi contada no primeiro volume da minha obra As Gentes e a Terra de Lameiras,
[2] Pequeno feixe de espigas, dito também, mão-cheia, que se podem apertar com a mão. Era normalmente feito com as espigas que se apanhavam no campo depois de se ter terminado a ceifa. As espigas que ficavam no chão eram aproveitadas pelos pobres que faziam esses manhuços, atando-os com os caules mais compridos. Aulete, Caldas (1952). Dicionário Ccontemporâneo da Língua Portuguesa, Vol. II, p. 310, diz que o termo manhuço é próprio de Trás-os-Montes e define-o como sendo: “conjunto de coisas, que se podem abranger na mão, sem se esconder, pequeno feixe, manelo” e diz que vem do latim Manus. “Manelo” é um punhado de coisas.
[3] Segundo Plínio, o Velho, era do tamanho de uma águia, com plumagem dourada em torno do pescoço, corpo vermelho e cauda azul. Tinha uma barbela na garganta e um tufo de penas na cabeça (http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/F%C3%AAnix.
[4] Liddel & Scott, 1968, pp. xvii e 1046
[5] Idem, p. 335.
[6] Cumont, Les religions orientales, p. 236
[7] Península Ibérica, cit., pp. 555-60, citado por Moisés Espírito Santo, 1988, Origens orientais da religião popular Portuguesa – Seguido de Ensaio Sobre Toponímia Antiga...., , E Assírio e Alvim, Lisboa, p.237.
[8] Gandra, Manuel J. (2007). Portugal Sobrenatural: Deuses, Demónios, Seres Míticos, Heterodosxos, Marginados, Operações, Lugares Mágicos e Iconografia da Tradição Lusíada. (Vol. I, p. 350-351). Lisboa: Esquilo edições e Multimádia, Lda.
[9] Croquis d’Ana Samanta Almeida
[10] Uma das filhas de Triton deu, igualmente o epónimo a uma cidade grega na região de Ankhara, como se pode encontrar nas Obras de Pausanias (Description de la Grèce, VII, 22,8), selon  le site < http://www.theoi.com/Nymphe/NympheTriteia.htmlsite >.
[11] Hélcio Maciel França Madeira, Curso de Direito Romano: História, pp. 12 e 13. [online] [Consult. 29-06-2010] Disponível em: http://helciomadeira.sites.uol.com.br/GPHD_arquivos/CL_0_arquivos/CL_L2_T3.pdf.
[12] Esta expressão é latina e foi introduzida no Credo de Niceia pela Igreja Católica Romana para com ela afirmar que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho. Tal adição levou à separação da Igreja Ortodoxa, em 1054, separação essa que ainda hoje persiste.
[14] [online] [Consult 29-06-2010] Disponível em: http://www.clerus.org/clerus/dati/2007-11/23-13/08 QUESTAOFILIOQUE.html. 
[15] Portugal Sobrenatural, 2007, p. 351.
[16] Este Édito foi promulgado a 13 de Junho de 313 pelo imperador Constantino (306-337), vindo a assegurar a tolerância e a liberdade de culto ao Cristianismo em todo o Império Romano.
[17]Hesíodo, Teogonia, Cosmogonia, 116-133.  
[18] Hesíodo Teogonia, Cosmogonia, 134-138
[19] Na forma feminina Gaia declina-se desta maneira: Nom. Gaia, gen. Gaias, Dat. Gaia, Ac. Gaian, Voc. ‘o Gaia enquanto no Masculino o termo correspondente Gaio se declina desta forma: Nom. Gaios; gen. Gaious, Dat. Gaio, Ac. Gaion, Voc. ‘o Gaie.
[20] Liddell, H., G. & Scott, R. (1968)., Greek-English Lexicon, Oxford, at the Clarendon Press, p. 335.
[21] Moisés do Espírito Santo, op.cit. p. 216-217
[22]  F. Durbach, Dictionnaire des antiquités grecques et romaines, V, p. 65 citado por Moisés do Espírito Santo, op. cit. P. 217.
[23] Moisés Esp. Santo. Ibidem
http://fenixdefogo.wordpress.com/2012/04/01/poseidon-poseidon-%D0%BF%D0%BE%D1%81%D0%B5%D0%B9%D0%B4%D0%BE%D0%BD-%E6%B3%A2%E5%A1%9E%E5%86%AC-%E3%83%9D%E3%82%BB%E3%82%A4%E3%83%89%E3%83%B3-neptunum-posidon-%CF%80%CE%BF%CF%83%CE%B5%CE%B9%CE%B4/
[25] Full text of "The verses formerly inscribed on twelve windows in the choir of Canterbury cathedral".Cambridge Antiquarian Society. Octavo Publications. No. XXXVIII,THE VERSES FORMERLY INSCRIBED ON TWELVE WINDOWS IN THE CHOIR OF CANTEKBUKY CATHEDKAL. Repeinted, From The Manuscript (nº 25). [online][Consult.19-06-09 e 20-06-2010]. Disponível em |http://www.archive.org/stream/ versesformerlyin00jamerich/versesformerlyin00jamerich_djvu.txt.

Bibliografia

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Barthes, Rolan (2000). A Câmara Clara. Edições 70
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