ÍNDICE
Preâmbulo
A Pedra que
serve de base à cruz que, hoje, fica à esquerda da cruz central do Calvário de
Lameiras tem imagens somente na face frontal.
Esta pedra é
diferente das outras, não só pela sua forma e tamanho, mas, sobretudo, pela
inscrição que nela se encontra, pelo nome por que é conhecida e pelas
vicissitudes por quem tem passado.
“Santos do
Forno”
Relativamente
às suas medidas, a largura da face da frente juntamente com a face oposta, é de
0.55m, enquanto as faces laterais não ultrapassam 0,47m, sendo a altura das
quatro faces igual, sensivelmente 0, 60m. O seu peso deve rondar os 400kg,
enquanto a sua forma é a de um paralelepípedo:
Paralelepípedo
Para além das
figuras, esta pedra caracteriza-se por uma inscrição grega exarada em letras
romanas “Li. Gaias” e pela maneira como era conhecida entre os
Lameirenses, pois chamavam-na “Santos do Forno”, sem falarmos da história “meio
lendária” da sua transladação de do seu lugar “original” para o forno
comunitário, daqui para Pinhel, sede do Concelho e daqui para o local onde
agora se encontra.
Ora, se bem se
compreende o atributo “do forno”, mais dificilmente se percebe porque é que a
população lhe atribuiu sempre o nome de “Santos”[1]. Esse
dois atributos, especialmente o segundo, levaram-me a opinar que, por detrás
deles esteja a prestação de um culto divino que antes existira legalmente e
que, em tempos posteriores, passou a ser considerado abominável, permanecendo
furtiva e disfarçadamente na mente e no coração de alguns dos seus devotos que
o foram perpetuando até se desvanecer e misturar com elementos lendários.
1- Identificação e Descrição das figuras
A partir da fotografia ilustrativa
que acabo de apresentar verifica-se existirem cinco elementos ilustrativos:
1º Elemento –
A Inscrição LI.GAIAS (Fig. 1), por cima de todo o
conjunto artístico;
Inscrição
2º Elemento –
Uma figura humana (fig.2), ao centro, vestida com uma túnica que lhe
desce do pescoço até ao chão, encobrindo-lhe inclusivamente os pés;
- Tendo, à cabeça, um cesto ou alcova recheada de frutos ou outros géneros alimentícios;
Figura humana
3º Elemento –
Uma figura humana (feminina?) (Fig.3), do seu lado direito, a
oferecer-lhe, com a mão direita, um manhuço[2] de
espigas ou um ramalhete de flores e com a mão esquerda empunhando um ramo de
árvore (mais semelhante a um ramo de palmeira/tamareira);
4º Elemento –
Do lado esquerdo e, imediatamente junto à figura humana central, descortina-se
uma outra figura (Fig.4), de perfil e completamente vestida, à
excepção dos pés, com corpo humano e com cabeça de ave (possivelmente a cabeça
da Fénix[3], cf.
Moisés do Espírito Santo, Secção de figuras entre as pp. 240-241, verso da
moeda de Tiro, da figura 37) em posição de confidente ou de assistente
privilegiado, possivelmente com a função sacerdotal;
5º Elemento –
Mais afastada, está outra figura humana (Fig.5), talvez masculina, também de
costas, com o cabelo mais curto do que o da primeira figura, e nua, a oferecer,
com a mão esquerda, um grande fruto (muito parecido a um abacaxi/ananás),
enquanto na mão direita levanta um ramo de árvore, em sinal de alegria.
A simetria
conseguida entre esta figura e a aqueloutra do lado direito pode constituir,
por assim dizer, a dupla de “acólitos da espiga”.
2- Análise das imagens
2.1- Análise da Inscrição
As letras estão escritas em
caracteres latinos (LI.GAIAS), mas formam um grupo ou expressão grega Λι. Γαιας
ou Λι. γαιας.
Nesta inscrição, o nome
Gaias vem precedido pelo advérbio Li e é seguido por um
ponto. Este advérbio Li encontra-se em Aristófanes (184,2), um poeta e
cómico ateniense do século IV (a. C.), na forma de Lian Pánu, segundo a
opinião de Liddel & Scott[4],
com a significação de ‘verdadeiramente’, ‘o verdadeiro’, ‘o autêntico’. Desta
forma, a tradução de Lian Pánu de Aristófanes seria “ao verdadeiro deus
Pan”. De igual modo, a forma Li (Λι),
seguida do caso genitivo, encontra-se na Tragica Adespota (Ed. A. Nauck
TGF p. 837), segundo os mesmos autores Liddell & Scott[5].
Ora, aplicando
o mesmo advérbio Li (Λι)
ao substantivo “Gaias, Γαιας”,
teremos a expressão Li.gaias, significando: “à verdadeira Gaia »,
ou « à autêntica Gaia».
Os deuses
romanos não foram muito populares entre os lusitanos. Se é verdade que o culto
aos vários deuses romanos se encontra comprovado por todo o lado, também não
deixa de ser verídico que esse culto se encontrava sobretudo nos centros
urbanos ou seja, nos municípios. Ao lado destes “instalaram-se os
representantes de todo o panteão asiático, e era para esses deuses que ia a
adoração mais fervente das multidões”[6].
García y Bellido[7] explica a “não adesão à
religião romana pela falta de conteúdo místico da mesma”
Por outro lado,
os romanos adoptaram divindades vindas de outros povos e, tanto aos deuses
próprios, como aos que tinham adoptado de outras origens, prestavam-lhes o
culto que lhes era apropriado, de uma maneira geral em pequenas aras
para os quais escolhiam de preferência pequenas elevações, perto ou dentro das
suas residências quando se tratava de deuses pertencentes a uma família ou,
então, nos pequenos morros quando se tratava de uma povoação ou vila.
Essas aras eram
preferencialmente em forma de paralelepípedo, sendo normalmente trabalhada
artisticamente, podendo, inclusive, conter uma ou mais inscrições. Era à volta
dessa ara que se realizavam as cerimónias cultuais dedicadas às divindades
protectoras da casa ou do povoado.
A Ara
era propriamente o local onde se depositavam as oferendas e encontrava-se
colocada na parte mais elevada da casa ou da povoação que, normalmente, se
situava num pequeno outeiro sobranceiro a esses lugares. A esses lugares
sobranceiros à aldeia ou aos outeiros onde as aras eram colocadas dava-se-lhes
o nome de “altarium (singular). Portanto, o lugar de culto de uma vila
(casa senhorial) romana ou de um povoado era constituído por dois elementos
fundamentais: o outeiro ou parte mais elevada que era, normalmente
preparada de modo a constituir uma espécie de terreiro (quando não era já
naturalmente um lajedo) e a ara que se colocava no meio desse local
aberto. Esta disposição da Ara facilitava a adoração que os fiéis vinham
prestar à divindade em cuja honra era erigida.
Manuel J.
Gandra no seu livro Portugal Sobrenatural[8], ao
referir-se a este assunto fornece informações muito importantes, tanto no que
diz respeito à ara, como no que concerne o nome porque ficou sendo
conhecido o altarium entre a gente do Minho. Segundo ele, a ara
constituía o “elemento fulcral do altarium, isto é, do outeiro, colina
ou alto sobranceiro à povoação, onde decorriam os referidos cultos”, enquanto o
altarium se conserva na toponímia minhota sob as formas de crasto,
crastelo e castelo”. Por outro lado, Gandra afirma que, “nos
nossos dias, muitas aras aparecem a servir de supedâneos a cruzeiros
processionais de certos templos erguidos na proximidade de antigos outeiros,
substituindo-os”.
2.2- Características sagradas desta pedra
Esta sua
explicação julgo poder aplicar-se à pedra de Lameiras que é conhecida sob o
nome de “Santos do Forno” e dou razão desta minha hipótese:
Em primeiro lugar esta pedra apresenta
características de ara romana, pois que tem forma paralelipipédica; é
uma pedra trabalhada artisticamente; apresenta imagens referentes à agricultura
e possui uma inscrição que tudo indica ser dedicada à deusa Gaia,
isto é, à deusa Mãe-Terra.
Em segundo lugar, encontra-se actualmente a
servir de supedâneo de uma cruz.
Em terceiro
lugar existe uma tradição em Lameiras, segundo a qual essa pedra, nos seus
inícios, se encontrava junto às outras duas pedras que hoje fazem parte do
Calvário e que teriam sido separadas por um “homem mau”, talvez um Regedor ateu
ou incrédulo. Essa personagem desconhecida teria procedido a essa separação,
deixando uma no lugar original (a pedra central), levando a segunda para o
forno (de modo a padecer os horrores do fogo) e a terceira, para a fonte do
Lameiro (de modo a ser afogada).
2.3- Pedra ligada a uma Lenda
Entre o Povo de
Lameiras existe uma “Lenda” ou história, segundo a qual esta pedra, na sua
origem, repartia o mesmo espaço sagrado com as outras duas pedras que, hoje se
servem de supedâneo às outras cruzes do Calvário do “Santo”. Uma vez separadas
por um homem mau, foram ocupar lugares distintos:
- A pedra central foi utilizada como pedestal da Cruz Central que assim ficou por muitos anos;
- A pedra da “Pietá” foi colocada nua “Fonte do Lameiro” para que se afogasse sempre que as águas crescessem;
- A “Santos do Forno” (a pedra que está a ser estudada neste terceiro capítulo) foi colocada numa das paredes do Forno Público ou Comunitário para que sofresse os horrores do fogo.
2.4- Toponímia sagrada de Lameiras
Em Lameiras existem
nomes que podem ser relacionados com a Ara dedicada a Gaia. Por exemplo:
O topónimo de
“Castelo” (um dos locais a Noroeste da aldeia e considerado o bairro onde
começou a construção da aldeia) talvez tivesse a sua origem num antigo Castelum
que teria substituído o nome de Altarium, onde se encontrava instalado o
Altar dedicado a Gaia.
Na verdade, a
tradição afirma que as três pedras originariamente se encontravam a ocupar um
mesmo espaço, ou seja, uma zona, mais ou menos extensa, onde elas poderiam ter
o respectivo assento.
Quem conhece
bem a topografia de Lameiras sabe que o terreno que, começando no “Santo”,
passa pelo “Castelo” e se prolonga até à “Tritana”, onde, no meu
tempo, existia uma nascente de água a partir da qual foi feito um pequeno reservatório
muito rudimentar que servia de lavadouro de roupa.
‘Santo’ Fidalga” ‘Castelo’ Tritana’
O “Castelo” foi
sempre considerado o “começo da Aldeia”, pois “acima dele, havia muitas
formigas”, dizia-me um habitante do bairro. Este facto impediu a construção de
habitações humanas na área superior. Este nome, porém, como já vimos
relacionar-se-ia com o “Castelum” romano que poderia muito bem ser o
substituto do nome “altarium”, ou do local onde existira, antigamente a
Ara sacrificial.
A “Tritana”,
por seu lado, é um nome que, possivelmente, teve origem num possível culto
dedicado à família do deus mitológico Tritão (Τρίτων). Esta divindade
marinha era considerado o mensageiro do Mar por ser filho de Anfitrite (ou
Salácia) e de Poseidon, o deus do Mar que na mitologia romana tinha o nome de
Neptuno e que era geralmente representado com cabeça e tronco de homem e cauda
de peixe.
Tritão deu
origem à classe dos Tritões (Τρίτωνες), que podiam ser masculinos e/ou
femininos e cuja função era a de acompanharem as divindades marinhas. Sendo
assim, o nome “Tritana” estaria relacionado com uma das filhas de Tritão,
talvez Triteia[10]. Assim, tal nome, dado à
pequena nascente e pequeno tanque de Lameiras, constituiria um resquício
deixado, ali, de uma divindade feminina da mitologia greco-romana.
Desta forma,
toda essa lomba teria sido, nos inícios da Povoação de Lameiras, o espaço
sagrado comum aos cultos que se prestavam às principais divindades
greco-romanas. O “Santo” deveria constituir o lugar do deus principal cujo nome
se desconhece, presentemente; o “Castelo” seria o lugar do altar de Gaia; a
“Fidalga” (zona entre o “Santo” e o “Castelo”) poderia ter sito assim chamada
por ali estar construída a residência de uma Dama nobre e a”Tritana” seria o
local reservado a uma filha de Tritão ou, talvez à própria Anfitrite, a deusa
do mar e esposa de Tritão, considerada também uma das filhas de Poséidon.
Ora, se dermos
crédito a essa tradição, podemos admitir que essas três pedras originariamente
se encontravam perto umas das outras. E, se a pedra central nunca foi removida
do local onde ainda se encontra hoje, então tal facto pode ser indício de que o
altarium ou outeiro original seria o outeiro que hoje é chamado de
“Santo” e que se estende para Norte, indo terminar na fonte da Tritana.
O nome “Castelo”,
dado a este bairro de Lameiras bem pode ter origem no facto de essa zona ter
servido de altarium, à ara dedicada a Gaia. Falta saber o que
significa, nessa antiga tradição, a expressão “estarem juntas” as três pedras.
Tanto pode significar que estava juntas, como agora se encontram, o que não me
parece muito plausível, como encontrarem-se as três num mesmo outeiro, embora
separadas por uma certa distância o que me parece ser mais realista.
Assim sendo, e
relativamente à pedra na qual está esculpida Gaia, poderia ter acontecido muito
naturalmente, o seguinte: nessa zona sobranceira à povoação de Lameiras
existiu, primeiramente, o altarium romano onde se encontrava a ara
dedicada a Gaia, e que se localizaria entre a Fidalga e a Tritana; este
local sagrado teria ficado conhecido entre a gente de Lameiras pelo nome
Castelo, topónimo que ainda hoje persiste; mais tarde, com a chegada do
Cristianismo e até ao século VII a prática religiosa em honra dessa divindade
Gaia continuou paralela com a prática cristã que escolheu o outeiro do “Santo”
para elevar a Cruz, o símbolo do Cristianismo; os próprios cristãos continuavam
a prestar culto tanto à Cruz, símbolo do Cristianismo, como a Gaia, resquício
do politeísmo romano; no sétimo século, principalmente após o VII Concílio
de Toledo, no Reino Visigodo (cujos inícios tiveram lugar a
18 de Outubro de 618 e no qual tomaram parte 39 bispos sob a
presidência do de Orôncio de Mérida), muitas coisas começaram a mudar no seio
do cristianismo ibérico.
Neste mesmo Concílio iniciou-se uma
modificação do Direito Romano de Justiniano, iniciando-se uma série de quatro
colecções visigóticas. Logo na primeira colecção foram declaradas “revogadas
todas as leis anteriores, proibindo o uso em qualquer juízo das leis romanas e
determinou que todos os pleitos que surgissem dali em diante, quer civis, quer
crimes, fossem processados e julgados exclusivamente de acordo com as regras
estabelecidas na sua colecção”[11].
E, no decorrer
deste mesmo Concílio, introduziu-se no Credo a palavra “filioque”[12], o
que originou, mais tarde, o cisma entre a Igreja Romana e a Igreja Ortodoxa
Grega que reclamava que a introdução de tal palavra era espúria e contradizia o
Credo da Concílio de Niceia (325 d. C.), actualmente a cidade de Iznik, na província
de Anatólia, na Turquia asiática e nome que se costuma dar à antiga Ásia Menor.
Efectivamente,
segundo testemunho da Arquidiocese Ortodoxa Grega de Buenos Aires e América do
Sul[13]
“A palavra "Filioqüe" significa "e
do Filho" e representa uma afirmação teológica introduzida
abusivamente pelo Ocidente no texto original do Credo de Niceia-Constantinopla.
Essa interpretação abusiva começou por ser feita em Espanha, nos Concílios de
Toledo dos séculos VI e VII e, mais tarde, generalizou-se a todo o Ocidente.
Vejamos o que diz o texto original do Credo:
"Creio no Espírito Santo (...) que procede do Pai, e com o Pai e o Filho
recebe a mesma adoração e a mesma glória". Portanto, temos uma afirmação
muito clara de que:
«O Pai, criador de todas as coisas, gerou o Filho e
expirou o Espírito Santo; Tanto o Pai, como o Filho, como o Espírito Santo, são
adorados e glorificados do mesmo modo; isto é, nós, cristãos, adoramos e
glorificamos uma Trindade perfeita, três Pessoas num só Deus.»
Ao alterar esse texto, aprovado por todos os Padres
conciliares e inspirados pelo Espírito Santo, a Igreja Romana impôs aos seus
fiéis a seguinte modificação:
«Creio no Espírito Santo (...) que procede do Pai e do
Filho ('Filioqüe')" Isto significa que o Espírito Santo é visto como uma
terceira Pessoa "diminuída" em relação ao Pai e ao Filho. Como se o
Espírito Santo já não devesse ser adorado e glorificado do mesmo modo e com a
mesma fé com que o são o Pai e o Filho...».
Esta questão,
porém, prolongou-se durante muito tempo, provindo dum credo atribuído ao papa,
São Dâmaso (366-384), sendo acompanhada de outras profissões de fé dos séculos
IV-VI. Seguindo estes exemplos, alguns dos Concílios regionais, especialmente
da Espanha começaram a fazer semelhantes declarações, sobretudo aqueles que se
realizaram nos anos 447, 633 e 638. Esta prática dos concílios espanhóis tinham
por objectivo difundir essa doutrina que, a bem dizer, contradizia o Credo do
Concílio de Nicéia.
Mais tarde, a
palavra “filioque” foi introduzida pelo III Concílio de Toledo,
realizado em 589, sendo recitado o credo já com essa palavra introduzida.
Simultaneamente a essa introdução foi pronunciado o anátema sobre todos aqueles
que recusassem acreditar que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho.
Esta inclusão
de “filioque” no Credo de Niceia, foi seguida pelos Concílios regionais
de Toledo (VIII, em 633; XII, em 681; XIII, em 683; XIV, em 688; XVII, em 694)
e ainda pelo IV Concílio regional de Braga, em 675 e pelo de Mérida, em 666[14].
A dar crédito a
estas transformações no Cristianismo, dos primeiros sete séculos, pode
inferir-se que até esse tempo o Cristianismo não poderia ter eliminado na
Península Ibérica os cultos tidos como idolátricos e provenientes das
civilizações anteriores. Era, demasiado evidente que, a par do culto, praticado
pelos novos cristãos “a cristianização não terá eliminado as práticas
litúrgicas tradicionais, nas zonas rurais, realizadas no altarium (outeiro),
apenas lhes desviando o alvo”, no dizer de Manuel Gandra[15].
Este mesmo autor continua por afirmar no mesmo texto que “Só a partir do século
IX, com o início da organização paroquial, os outeiros terão sido dotados de
ermidas” ou capelinhas. Até lá as aras ou estátuas representativas das
divindades adoradas existiam ao ar livre, desafiando as intempéries e as
adversidades de toda a espécie.
2.5- Interpretação da Lenda
Aproveito esta
anotação de Gandra para fazer uma pequena observação acerca do nome Castelo
pelo qual é conhecida uma parte ou bairro de Lameiros e que fica contíguo ao local
do Calvário actual, onde hoje se encontra a pedra, conhecida por “santos do
forno”. Segundo a tradição (como já disse, mas torno a repetir), esta pedra
teve o seu primeiro “habitáculo” exactamente onde agora se encontra. Ou seja: a
dar crédito a essa tradição, esta pedra teria sido retirada do outeiro que
sobranceava a aldeia, ou seja, de uma zona pertencente ao outeiro que ocupava a
região que hoje se expande desde o “Santo” até à “Tritana”, passando pelo
“Castelo”.
Por outro lado, a mesma tradição refere que
foi retirada dali por alguém que “era descrente”, e que, por isso, foi
alcunhado de “homem mau” ou “não temente a Deus”. Ora, como para fazer isso só
poderia tratara-se de alguém com autoridade, fácil foi concluir ter sido um
certo “Regedor” da Freguesia, cargo ocupado por um cidadão que sendo
considerado apto a manter a ordem pública, era nomeado directamente pelo
Presidente da câmara. Este “Regedor” seria, por assim dizer, a unificação dos
poderes civil e religioso que foi estabelecida a partir do Édito de Milão[16] do imperador
Constantino, com um imperativo conjunto da unificação do Império e
intensificada no tempo do reino visigótico num intuito idêntico que foi a
unificação do Reino Visigótico sob o signo do Cristianismo. Poderia, também,
este “homem mau” ser referido a uma autoridade religiosa cristã que teve por
finalidade erradicar o culto à divindade Gaia (?).
Ora com o
decorrer dos tempos e com a sucessão das gerações, foi fácil passar da história
à lenda e transformar a realidade dos factos em histórias misturadas com
semelhanças adicionadas e individualmente interpretadas consoante o que mais
verosímil parecia no momento em que as pessoas se sentiam confrontadas.
Assim, ao
falar-se de uma pessoa “descrente” poderia, na sua origem, significar descrente
na adoração prestada a uma divindade que não fazia parte da ortodoxia do
Cristianismo Romano e as expressões “um homem mau” e “não temente a deus”
poderiam muito bem ter sido proferidas pelos adoradores dessas divindades
antigas que, com a intransigência dos chefes do Cristianismo procuraram
desmantelar os sacraria, levando para locais diferentes e de usos
completamente a-religiosos, as aras que tinham sido dedicadas a tais
divindades. Desta forma, a ara dedicada a Gaia teria sido levada para o forno
comunitário, enquanto a ara que possui a dupla imagem do Ankah e da
Grande-Mãe teria sido encrostada na parede da “Fonte do Lameiro”. Esta seria
uma das vertentes da história da tradição cuja finalidade seria, portanto,
prioritariamente fazer desaparecer os lugares altos onde eram adoradas
divindades antes tidas por verdadeiras, mas apelidadas de idolátricas pelos
seguidores da Religião subsequente, ou seja, a Cristã.
Tal mudança de
locais, no entanto, pode muito bem ser considerada sob dois pontos de vista
diferentes: primeiramente e seguindo a lógica anterior pode ser considerada
como a condenação ao fogo e ao afogamento de todas as divindades contrárias ao
Cristianismo; mas também pode ser considerada como uma elevação destes dois
últimos lugares, enquanto o forno passaria a lugar de adoração de Gaia, deusa
agrária das colheitas (e muito bem visto, porque é no forno que se coze o pão
proveniente dessas colheitas) e a Fonte transformar-se-ia num templo dedicado à
Grande-Mãe que, além de ser tida como a deusa da fertilidade, era igualmente
simbolizada pela abundância das águas.
“Fonte do Lameiro”
Foto de JCM (2004)
Ângulo donde foi extraída a dita pedra, vendo-se as pedras de substituição
Foto de JCM (2004)
De facto, a
pedra com a inscrição Li.Gaias tem todas as características de uma verdadeira
ara dedicada à deusa Gaia, que não seria outra divindade senão aquela referente
à deusa Mãe-terra.
Segundo Hesíodo[17], Gaia (que também pode ser
denominada Géia, Gea ou Gê) é a deusa da Terra, a Mãe-Terra,
que tendo surgido do caos, juntamente com Tártaro, Eros (o amor), Erebo e Nix
(a noite), gerou sozinha Urano, Ponto e as Óreas
(as montanhas). E com Urano gerou os doze titãs chamados
respectivamente: Oceano, Céos, Crio, Hiperião, Jápeto, Teias, Reia, Témis,
Mnémosine, Febe, Tétis e Cronos[18].
Mas também não
seria, de todo alheia nessa inscrição, a presença de Gaiu, pois esta palavra
‘Gaio’ (de Gáïos, a, on[19]), é um adjectivo, referido
a Terra, significando: ‘da terra, ‘terráqueo” ou ‘filho da terra” (= paîs
gaïos), sendo o seu genitivo Gaiou[20].
Este nome, além de se aparentar com Gaia (Terra, em oposição a Mar e Céu) seria
o nome sob o qual era conhecido o próprio Poséidon, o deus do mar. Poséidon, na
verdade, começou por ser um deus agrário, ao qual os gregos e fenícios
prestavam culto. Por estas características ctónicas e pela força da metonímia,
foi-lhe atribuído o nome de “GAIUS”, o “Senhor ou Deus da Terra”, por
excelência.
Esta divindade
passou por várias metamorfoses, através dos tempos. Segundo Moisés do Espírito
Santo, Poséidon/Gaio “presidiu, por vezes aos percursos da vegetação e foi
honrado com as primícias da agricultura porque muitos lhe atribuíam a
propriedade de encher os caules de seiva e os bagos de sumo”[21]
e veio a ser celebrado em certas regiões no mês de Agosto, antes mesmo das
vindimas[22], enquanto que noutros
lugares da costa marítima do Médio Oriente foi adorado como um deus dos
infernos e do fogo explicando Moisés do Espírito Santo[23]
esta última atribuição pelo facto de existir uma certa semelhança entre os
abismos marinhos e o mundo subterrâneo e por se atribuir a Poséidon o poder de
provocar os terramotos e os maremotos.
Poseidon[24]
É muito curioso dar-se a Gaio a atribuição de Deus
do Inferno, e de Deus do fogo. Esta atribuição poder-se-ia encontrar
numa das doze janelas do Coro da Catedral de Canterbury (25), onde estava
escrito o seguinte texto:
Sic deus aitatur tumulo triduoque moratur.
Dominus ligaiu diabolum spolifiuit infernum[25].
E cuja tradução, em português poderá ser a seguinte:
Assim como se diz que Deus morou no túmulo durante três dias,
Assim o Senhor Ligaiu sepultou (substituiu (?) o diabo no inferno
Mais
tarde, Poséidon/Gaio passou a ser o Senhor dos mares, porque os seus adoradores
se tornaram marinheiros e, por extensão, deus dos oceanos, dos rios, dos lagos
e das fontes. Assim, quando Ulisses enfrentou as graves dificuldades da
navegação, é de Poséidon que ele fala e é a ele a quem se dirige, segundo a
Odisseia de Homero.
3- Conclusão
A figura que se
encontra nesta pedra do Calvário do Santo de Lameiras, concelho de Pinhel e que
possui a inscrição LI.GAIAS, deve ser uma Ara ou Altar dedicado a
uma divindade chamada Gaia, Géia, Gea (Γαῖα que
é a forma poética grega de Γῆ (Gē ou Gê - “terra”) que
personificava a Deusa da Terra ou a Mãe-Terra à qual os antigos habitantes de
Lameiras ofereciam parte das suas colheitas, na esperança de receberem as
graças da fertilidade dos seus campos e dos seus animais.
A existência desta pedra no “Santo” dessa
freguesia é um monumento de carácter religioso que, além de testemunhar o culto
prestado a uma divindade não cristã, supõe uma época muito antiga, anterior,
pelo menos, à época em que o cristianismo se fixou plenamente nessa aldeia.
NOTAS
[1] Esta história foi contada no primeiro volume da minha
obra As Gentes e a Terra de Lameiras,
[2] Pequeno feixe de espigas, dito também, mão-cheia,
que se podem apertar com a mão. Era normalmente feito com as espigas que se
apanhavam no campo depois de se ter terminado a ceifa. As espigas que ficavam
no chão eram aproveitadas pelos pobres que faziam esses manhuços, atando-os com
os caules mais compridos. Aulete, Caldas (1952). Dicionário Ccontemporâneo
da Língua Portuguesa, Vol. II, p. 310, diz que o termo manhuço é próprio de
Trás-os-Montes e define-o como sendo: “conjunto de coisas, que se podem
abranger na mão, sem se esconder, pequeno feixe, manelo” e diz que vem do latim
Manus. “Manelo” é um punhado de coisas.
[3] Segundo Plínio, o Velho, era do tamanho de uma águia,
com plumagem dourada em torno do pescoço, corpo vermelho e cauda azul. Tinha
uma barbela na garganta e um tufo de penas na cabeça
(http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/F%C3%AAnix.
[4] Liddel & Scott, 1968, pp. xvii e 1046
[5] Idem, p. 335.
[6]
Cumont, Les religions orientales, p. 236
[7] Península Ibérica, cit., pp. 555-60, citado por Moisés
Espírito Santo, 1988, Origens orientais da religião popular Portuguesa –
Seguido de Ensaio Sobre Toponímia Antiga...., , E Assírio e Alvim, Lisboa,
p.237.
[8] Gandra, Manuel J. (2007). Portugal Sobrenatural:
Deuses, Demónios, Seres Míticos, Heterodosxos, Marginados, Operações, Lugares
Mágicos e Iconografia da Tradição Lusíada. (Vol. I, p. 350-351). Lisboa:
Esquilo edições e Multimádia, Lda.
[10] Uma das filhas de Triton deu, igualmente o epónimo a uma cidade grega na região
de Ankhara, como se pode encontrar nas Obras de Pausanias (Description de
la Grèce, VII, 22,8), selon le site
< http://www.theoi.com/Nymphe/NympheTriteia.htmlsite
>.
[11] Hélcio Maciel França Madeira, Curso de Direito
Romano: História, pp. 12 e 13. [online] [Consult. 29-06-2010] Disponível em:
http://helciomadeira.sites.uol.com.br/GPHD_arquivos/CL_0_arquivos/CL_L2_T3.pdf.
[12]
Esta expressão é latina e foi introduzida no Credo de Niceia pela Igreja
Católica Romana para com ela afirmar que o Espírito Santo procedia do Pai e do
Filho. Tal adição levou à separação da Igreja Ortodoxa, em 1054, separação essa
que ainda hoje persiste.
[13] [online] [Consult 29-06-2010] Disponível em http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/
igreja_ortodoxa/ o_cristianismo_ortodoxo_em_perguntas_e_respostas.html.
[14] [online] [Consult 29-06-2010]
Disponível em: http://www.clerus.org/clerus/dati/2007-11/23-13/08
QUESTAOFILIOQUE.html.
[15] Portugal Sobrenatural, 2007, p. 351.
[16] Este Édito foi promulgado a 13 de Junho
de 313 pelo imperador Constantino (306-337), vindo a assegurar a tolerância e a
liberdade de culto ao Cristianismo em todo o Império Romano.
[18] Hesíodo Teogonia, Cosmogonia,
134-138
[19] Na forma
feminina Gaia declina-se desta maneira: Nom. Gaia, gen. Gaias,
Dat. Gaia, Ac. Gaian, Voc. ‘o Gaia enquanto no Masculino o
termo correspondente Gaio se declina desta forma: Nom. Gaios; gen.
Gaious, Dat. Gaio, Ac. Gaion, Voc. ‘o Gaie.
[20] Liddell, H., G. & Scott,
R. (1968)., Greek-English Lexicon, Oxford, at the Clarendon
Press, p. 335.
[21]
Moisés do Espírito Santo, op.cit. p. 216-217
[22] F. Durbach, Dictionnaire des
antiquités grecques et romaines, V, p. 65 citado por Moisés do Espírito Santo,
op. cit. P. 217.
[23] Moisés Esp. Santo. Ibidem
http://fenixdefogo.wordpress.com/2012/04/01/poseidon-poseidon-%D0%BF%D0%BE%D1%81%D0%B5%D0%B9%D0%B4%D0%BE%D0%BD-%E6%B3%A2%E5%A1%9E%E5%86%AC-%E3%83%9D%E3%82%BB%E3%82%A4%E3%83%89%E3%83%B3-neptunum-posidon-%CF%80%CE%BF%CF%83%CE%B5%CE%B9%CE%B4/
[25] Full text of "The verses formerly inscribed on twelve windows in the choir of Canterbury cathedral".Cambridge Antiquarian Society. Octavo Publications. No. XXXVIII,THE VERSES FORMERLY INSCRIBED ON TWELVE WINDOWS IN THE CHOIR OF CANTEKBUKY CATHEDKAL. Repeinted, From The Manuscript (nº 25). [online][Consult.19-06-09 e 20-06-2010]. Disponível em |http://www.archive.org/stream/ versesformerlyin00jamerich/versesformerlyin00jamerich_djvu.txt.
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